Durante o caminho para a sessão de Aquarius, pensava comigo sobre a especulação imobiliária que começa a avançar no bairro onde eu moro, a Várzea. É um bairro predominantemente habitado por casas e prédios de até três andares, mas que, de uns tempos pra cá, temos encontrado alguns edifícios enormes. Também lembrei do Caiçara, em Boa Viagem, que teve uma demolição iniciada em 2013, e interrompida com decisão judicial que pedia a reconstrução do edifício da década de 1940. No entanto, em 7 de abril deste ano, fomos pegos de surpresa quando vimos nos jornais que o Caiçara estava sendo derrubado pela construtora Rio Ave.
Aquarius inicia com imagens fotográficas em preto e branco nos levando, logo depois, para a década de 1980, onde conhecemos Clara e seus familiares. Desde esse período, ela mora no edifício que dá nome ao filme, com uma arquitetura de anos anteriores e preservado até a atualidade pela protagonista, que resiste dia após dia como única moradora do local. O restante do prédio foi desocupado, os outros moradores aceitaram a oferta de uma construtora que quer fazer o mesmo que a Rio Ave fez com o Caiçara.
Clara é interpretada por Sonia Braga e o elenco conta com nomes como Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Humberto Carrão e Pedro Queiroz. A protagonista vive sozinha em um apartamento do Aquarius, preservado com móveis antigos e sua coleção de vinis. Assim como o próprio edifício, Clara também conserva uma cômoda que ganha uma atenção especial no roteiro e na direção de Kleber Mendonça Filho. O móvel fez parte da história de Tia Lúcia, a qual conhecemos no início filme, que aliás, ganha uma divisão em partes como em O Som ao Redor.
Diferentemente do primeiro longa de ficção de Kleber, a história de Aquarius centra em um só personagem: Clara. Conhecemos o dia a dia dela, os seus filhos, sobrinho e sua intimidade. Ela lutou contra um câncer de mama e agora luta para preservar o local de sua história, de sua vivência e lembranças. Também crítica musical, Clara desperta em nós um contato próximo com a música. Sonia Braga dá vida a uma personagem fortíssima, que não abre mão de sua história por dinheiro algum.
Ela protagoniza também duas falas que resumem bem a sociedade de hoje: “Quando você gosta, é vintage. Quando você não gosta, é velho.” E, em um diálogo com os filhos, Clara fala sobre loucura, porque ela pode parecer louca por tentar preservar o Aquarius, mas “a loucura está lá fora”. E essa fala pode ser adaptada para outros contextos. Em tempos em que precisamos resistir cada dia mais, Aquarius chega para nos fortalecer.
Aquarius foi ovacionado no festival de Cannes, onde a equipe protagonizou um protesto mostrando ao mundo a situação política brasileira e denunciando o golpe em curso. O filme venceu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cinema de Lima, que deu a Sonia Braga o prêmio de melhor atriz. O longa também foi premiado no Festival de Sydney, na Austrália, e selecionado para os festivais de Toronto e Nova York.
No Brasil, a estreia acontece no dia 1º de setembro, com pré-estreia marcada no Cinema São Luiz, no Recife, neste sábado (20), com ingressos esgotados.
Confira agora a crônica escrita pelo jornalista Vinícius de Brito sobre o Caiçara:
CRÔNICA DE UMA MORTE CAIÇARA
Revisito o texto na manhã do dia 7 de abril, horas depois do esqueleto do Edifício Caiçara ser pulverizado pelas máquinas da construtura Rio Ave, que desde 2013 já tratara de desfigurar o prédio da orla de Boa Viagem escondido entre castanheiras. Lembro que após escrever a crônica, descobri que uma tia minha havia morado ali em meados do século passado, mas minha história com o lugarejo era outra. Até porque ele virou símbolo, antes mesmo de se esmiuçar à areia. Texto originalmente publicado no livro R A C H A D U R A.
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– Você sabe onde fica aquele prédio que está meio caído? – estava eu na Península (quase autônoma) da Zona Sul e perguntava sobre o “mambembe” Caiçara a uma mulher. – Não sei, não. Talvez seja pra lá – apontou ela da Avenida Conselheiro Aguiar, que fica a poucos metros da orla. Não satisfeito, repito a inquietação a outra Belle du Jour que encontrei logo mais: – Você vai andar mais um pouco. É mais pra frente – disse. Esta andança me levou à Avenida Boa Viagem. Seguindo os conselhos da última informante, cheguei ao número cabalístico 888, e o GPS me norteava o bairro adjacente do Pina como destino. Ali, espremido entre o Edifício Nossa Senhora de Copacabana e o Studio Portal de Boa Viagem, resistem os escombros do meu achado dos anos 1940.
Na verdade, eu bem que sabia a localização do tal “Coliseu”, mas queria sentir se a ruína do que restou do Caiçara saltava aos olhos dos moradores ao redor. Ao que parece, não fez muita diferença.
Era uma tarde incomum de quinta-feira. Naquele dia 22 de maio de 2014, o silêncio que costuma imperar nas madrugadas de outro bairro, o de São José, no centro, havia sido anulado, porque se ouviu de longe o agudo amargo de tratores. É só juntar uma coisa a outra. As máquinas haviam começado a destruir os armazéns abandonados do Cais José Estelita, e isso, claro, a mando de uma grande construtora da Cidade Maurícia. Porém, o trabalho às escuras foi embargado por um grupo de moradores que, no melhor estilo só-se-for-por-cima-do-meu-cadáver, se impôs àquela intransigência.
E o que isto tem a ver com o neocolonial Caiçara? Tudo. A ação das empresas da construção civil: derrubar construções antigas e construir muralhas de 30 andares em ode à contemporaneidade. E a reação das pessoas: protestar contra um plano que só favorece as construtoras e, por vezes, a Prefeitura da Cidade do Recife (PCR).
No caso do Edifício Caiçara, em 2013, a empresa que detém a posse do terreno onde cambaleia o prédio começou o processo de destruição – como disse, algo muito similar ao que se planejava para os armazéns. A Justiça do Estado, no entanto, estabeleceu à época que, se a construtora colocasse tudo a baixo, pagaria uma multa altíssima. E a demolição foi embargada. O resultado é o que se vê por trás da castanheira que toma a vista do prédio – e pela qual os banhistas se digladiam para ter sombra: um terço da construção original restou, digo, os escombros engoliram a porta azul tingida e as janelas emolduram, hoje, o estrago. Das pastilhas pixeladas, o mar se encarregou de tirar o brilho. E a porta, enfim, por onde os moradores passavam, agora é só um tapume metálico.
Sentado em um banco da Praia de Boa Viagem, estrategicamente de frente para o Caiçara, passei meia hora. Observei a relação de quem passava por lá. Sinceramente, naquele dia, digamos, insólito, não senti a menor diferença na rotina praieira da Zona Sul. As madames passavam com seus poodles à coleira; por consequência, as amas se encarregavam das crianças. Os saudáveis caminhavam com troços tecnológicos presos ao tronco. Surfistas havia poucos. Namorados se entocavam nos coqueirais. Mas, para não dizer que não falei das flores, vi uma mulher. Apenas. Ela passava pela calçada do Caiçara e dedicou um tempo à ruína. De longe, até pude notar um olhar angustiado. Curioso, talvez.
Apesar da minha impressão, não posso negar um movimento que comove pessoas a partir dos clarins da internet – e que extrapola a WEB, vide a relatada ocupação do Cais José Estelita. É uma parcela de amantes do Recife que reivindica suas memórias, uma identidade arquitetônica recifense que não se sustenta na padronização do mar de concreto. O movimento “Salve o Caiçara”, como foi batizado, tornou o prédio desacreditado até mesmo pelo Conselho de Urbanismo e Desenvolvimento (CDU) – que, em votação, decidiu pela destruição do edifício, em abril de 2014 – em símbolo contra o processo de verticalização acelerado. O Caiçara, ainda que moribundo e desfigurado, diz que um “Novo Recife” é sustentável. Afinal, percebe-se vigor em uma cidade quando mais lhe vale um prédio de dois andares do que um “espigão” de trinta.




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