Deuses Americanos: muitos personagens para pouco conflito


Por Rostand Tiago

Em 2001, o célebre escritor Neil Gaiman (autor da série de quadrinhos Sandman) trouxe ao mundo o inventivo e excelente romance Deuses Americanos, que não demorou muito para se tornar cultuado. Desde 2011, emissoras correram atrás para passar levar a rica narrativa de Gaiman dos livros até a televisão. Inicialmente planejada para ser produzida pela HBO, a série ganhou vida no canal Starz em 2017, nas mãos dos roteiristas Bryan Fuller (Hannibal) e Michael Green (Logan), que já demonstraram sua capacidade para desenvolver trabalhos para TV. Porém mesmo levando todo esse tempo para chegar às telas, ambos não conseguiram achar uma história para contar, levando em conta toda a riqueza do material de origem. Sim, American Gods pode até ter conseguido levar o apelo visual do romance em que foi inspirado, mas passa longe do potencial dramático original.

O enredo gira em torno do detento Shadow Moon (Ricky Whittle), que recebe a notícia da morte de sua esposa, Laura Moon (Emily Browning), em um acidente de carro poucos dias antes de ser solto. Com isso, sua liberdade é adiantada e um Shadow sem perspectivas futuras é quem deixa a penitenciária. É nesse momento de vulnerabilidade que o ex-presidiário é abordado pelo misterioso Mr.Wednsday (Ian McShane), um homem poderoso que contrata Shadow como seu guarda-costas. Juntos, eles viajam pelos Estados Unidos buscando alistar divindades antigas de diversas origens (russas, irlandesas, africanas) que se encontram no país, mas de forma enfraquecida pela perda da fé nelas com o passar dos anos. O objetivo dessa jornada é juntar forças para combater novas divindades que conquistaram a crença e o culto da população. Exemplos desses são a Mídia (a Media, vivida por Gillian Anderson) e a Tecnologia (o Techincal Boy, feito por Bruce Langley).



A busca das divindades, sejam elas velhas ou novas, da manutenção de suas existências por meio da obtenção de novos adoradores é a alegoria mais forte da narrativa. O desenvolvimento do conflito entre essas entididades carrega um potencial dramático de grande força, com vários ramos e interseções a serem explorados. E é justamente o fraco desenvolvimento desse conflito que empaca American Gods numa trama maçante. O texto de Fuller e Green se perde em que história contar, não conseguindo equilibrar a apresentação de personagens com a construção de uma ameaça que os colocará em conflito, criando um arrastamento no ritmo do enredo. Esse arrastamento fica mais significante quando somos apresentados ao arco de Laura Moon, esposa de Shadow que retorna dos mortos. São dadas horas a fio para se desenvolver os objetivos e a personalidade da moça em uma subtrama que desvia o foco da narrativa. Não que a história de Laura Moon seja dispensável, porém a decisão de dedicar episódios inteiros ou quase inteiros apenas para ela e suas motivações acaba e se tornando um anticlímax.

Entretanto, se a série peca em aspectos de enredo e ritmo, ela acerta em sua composição visual e sonora, estabelecendo uma atmosfera visceralmente fantástica. O uso amplo de cores saturadas e quentes, movimentos desacelerados e uso de trilhas sonoras que dialogam com as origens de certos personagens conferem o tom surreal do mundo explorado por Shadow e pelo público. Já o emprego de uma violência gráfica explícita tenta compensar a falta de choques dramaticamente importantes, usando até mesmo referências a outras obras, como o clássico Laranja Mecânica.

Porém, há algo que funciona tanto visualmente como dramaticamente em American Gods. Trata-se dos enxertos em flashback que narram como foi a chegada das divindades antigas na América. Filmados em dimensões de tela diferentes do padrão da série, esses momentos funcionam como curtas dentro dos episódios e talvez pudesse ser a solução para a incapacidade de equilibrar a apresentação das personagens com o desenvolvimento do conflito. Um dos pontos mais fortes do seriado é justamente o enxerto que mostra a evocação da entidade africana Ananse em um navio negreiro que rumava ao novo continente. Embalado por um jazz intenso, Ananse relata para os futuros escravos como será a vida de dores e sofrimento deles e das futuras gerações da população negra naquele novo lugar, como destaque para a desenvoltura da performance do ator Orlando Jones na pele de Ananse.

Em termos de atuação, o destaque maior fica com o veterano Ian McShane, que traz uma canastrice já recorrente no trabalho do ator para o Mr.Wednesday, ainda carregando um tom de voz sóbrio e grave. Já o Shadow de Rick Whittle é composto por uma inexpressividade e passividade que acaba funcionando, transmitindo a falta de perspectivas, mesmo diante de situações tão absurdas como as que vive trabalhando para Wednesday. Destaque também para Pablo Schreiber na pele do leprechaun irlandês Mad Sweeney, que consegue garantir bons momentos no morno arco de Laura Moon.

Com isso, a primeira temporada de American Gods acaba parecendo um gigante primeiro episódio, em que ameaças se apresentam de forma tímida enquanto se é apresentada uma mitologia fascinante, porém incapaz de não deixar a série extremamente expositiva por si só. Mesmo que apresente discussões válidas sobre crença, fé e adoração, o show não funciona inteiramente justamente por não apresentar eventos de grande peso para o andar da história. O que resta é aguardar uma segunda temporada mais movimentada, uma vez que a primeira acaba usando suas horas de história para tentar montar um tabuleiro.

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